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ARTIGO: A dor de ter alguém nos 50.182 óbitos da Covid-19

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“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar. ” (Eclesiastes 3:1-4)

Viver é uma experiência fantástica, vemos as belezas que estão para serem desfrutadas; uma flor no jardim, o arco-íris depois da chuva, o sorriso de uma criança, um beijo apaixonado, etc. São tantas coisas agradáveis que temos para experimentar que é muito difícil se apartar da vida.

Para outros a vida não tem lá essas belezuras, pois são pessoas que enfrentam ou enfrentaram muitas situações difíceis na vida; abandono, fome, violência, falta de liberdade, etc. São tantas dores que alguns passam que parece que a vida é um grande castigo.

A jornada da humanidade na Terra é com altos e baixos, situações boas ou ruins. A grande saga é tentar equilibrar a gangorra e pendê-la para o lado mais positivo, algo sempre complexo a ser conseguido.

O escritor russo Dostoiévski abordou em suas obras grandes temas humanos, o sentido do sofrimento e da culpa, o livre-arbítrio, a religiosidade, o racionalismo, a inutilidade, a penúria, a brutalidade, o assassinato, o altruísmo, além de ponderar sobre transtornos mentais, muitas vezes unidos à desonra, ao isolamento, a barbaridade, ao masoquismo e ao suicídio.

Crime e Castigo, obra prima de Dostoiéviski, conta a os problemas que Raskólnikov com a justiça, mas me chama a atenção quando o personagem exalta alguns nomes da história. Homens como César e Napoleão que foram responsáveis por milhares de mortes, entretanto, foram considerados pela história como grandes heróis e conquistadores, na mentalidade do jovem Raskólnikov. Isso me faz pensar em meu Brasil.

Chegamos a mais de 50.000 mortos pela Covid-19 e temos que lidar não somente com as dificuldades colocadas pela pandemia, mas também com visões distorcidas da realidade, principalmente de alguns governantes que transparecem não ter a mínima ideia de empatia para com o sofrimento do povo, tratam o tema como uma estatística fria sem o devido respeito ao sofrimento alheio. Será que leram Dostoiéviski? Talvez quem sabe uma leitura mecânica e burocrática, sem internalizar as experiências afetivas que a literatura pode brindar a nossa existência.

Precisamos ter empatia para com as pessoas que de uma forma ou de outra são afetadas pela doença. Em outras palavras, devemos fazer o treino afetivo e cognitivo de procurar interagir entendendo a circunstância vivida por outra pessoa, além da própria posição em si. Somente com o treino de habilidades sócio emocionais, isso é possível. Por exemplo:

Estamos sempre sofrendo com as restrições de circulação social (e de fato é uma das melhores maneiras de prevenção) para que o sistema público de saúde possa se preparar, todavia vemos pelas mídias tradicionais e os blogueiros de plantão, uma grande deficiência na área da saúde. Hospitais de campanha que não saíram do papel, equipamentos de proteção individual superfaturados, farra nos gastos públicos sem licitação, respiradores comprados acima de preço de mercado e que não foram entregues, e vou parar por aqui, pois chega a ser até deprimente fazer esse relato de total desrespeito a vida de pacientes e trabalhadores da saúde.

Perdemos o direito no momento atual de algumas coisas tão simples da vida. Aperto de mão, ir aos eventos religiosos, estar na escola, fazer uma festinha (junina, aniversário, churrasco com os amigos etc.). Temos que andar de máscaras que não nos deixar mostrar os nossos sorrisos ou as ausências deles que eram uma forma de comunicação não verbal de nosso estado emocional.

Ainda por cima o que apresentei nas linhas anteriores, não podemos, nos casos de Covid-19 fatais, ter os rituais de despedidas como de costume.

Lembro do dia muito triste da morte de meu pai. Foi muito sofrimento. A dor, a angústia e a solidão que a morte impõe severamente a cada um de nós. Mas pude ir na funerária escolher o caixão e indicar os tipos de flores. Durante aquele doloroso dia pude receber o abraço carinhos de vários amigos, alguns que a tempos não via. Fizemos um culto em que um amigo pastor trouxe uma palavra confortante. Segurei a alça do caixão para colocar na sepultura. Meus filhos puderam jogar na cova algumas flores.

Ontem perdi uma tia para a Covid-19, meus primos e parentes não puderam fazer nada disso… Muito triste.

Qual o valor dos rituais que envolvem a morte? Os hábitos tradicionais de velório, enterro ou cremação, assim também como os serviços religiosos, marcam psiquicamente a passagem do tempo da morte, carregam o sentido da despedida e a nossa afirmação de afeto a quem se foi e aos seus entes queridos.

Os rituais de despedida de quem se foi são basilares para a elaboração do luto de quem permaneceu vivo. É a última vez em que se pode ver o corpo da pessoa amada. Para muitos é a derradeira chance de falar publicamente do amor e respeito por aquela vida que se foi.

Vivemos tempos difíceis, em que temos saudades dos tradicionais velórios. Que Deus nos proteja e nos fortaleça para podermos enfrentar essa pandemia.

 

Aguinaldo Adelino Carvalho
Palestrante, Professor, Teólogo e Terapeuta

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